Parte I
Solovietskie Ostrova
Estou absorta na pequena embarcação balançando sobre as ondas do Mar Branco.
O vento intermitente e úmido me fustiga. É verão, mas a temperatura de
oito graus me obriga a enterrar a cabeça no gorro de lã grossa e a
proteger o rosto com o capuz do sobretudo enquanto observo o ocaso
naquela madrugada clara, sob o Círculo Polar Ártico. Uma luz difusa
ilumina a noite e a transforma num cenário raro. Mal o sol se põe e já
se levanta. Assim, dia e noite não se delimitam, ao contrário,
alternam-se, sem o contraste de luz e trevas a que estou acostumada.
Este espetáculo me fascina: Noites Brancas.
Percebo que alguém me observa. Viro e vejo, envolta pela neblina, uma
mulher que aparenta ter a minha idade. Ela também está só naquele
tombadilho. “Vem com os romeiros?”, pergunta. “Não. Não sou peregrina.
Venho à procura de
meus mortos”, respondo. Ela balança a cabeça num sinal de que entende a razão de
eu
estar ali. “Mas você não parece russa!”. Sorrio. “E você, vem a
passeio?” “Também não. Trago a minha mãe. Ela busca a sepultura de seu
pai. Parece que ele foi executado na ilha.” Fitamo-nos, depois, o mar.
Assim ficamos em silêncio por algum tempo até ela apontar para uma luz
que lentamente se materializava no horizonte: Solovki.
Meu corpo estremece e a emoção me paralisa em
meio à neblina que tão pouco revela. O pequeno espaço é tomado pelos
viajantes. Todos querem ter a primeira visão reveladora do arquipélago.
Mais um pouco e as cúpulas arredondadas e brancas do Monastério Ortodoxo
despontam delineando aquele espaço santo, onde sob o domínio dos
Bolcheviques, em 1920, instalou-se o primeiro e o mais temido Gulag
soviético. Comoção. Algumas mulheres, com lenços coloridos na cabeça,
fazem o sinal da cruz. Outras apertam as mãos sobre o peito. Os homens
fumam. Pigarreiam. Tiram fotos. O barco balança muito em meio às ondas
vigorosas. Há passageiros que passam mal. O capitão abre caminho e joga
as grossas cordas para os marujos que já o aguardam no cais. O alvoroço
se instala. Cada um se prepara para deixar a embarcação. Atracamos. Olho
o relógio. São três horas da manhã. No mastro, o ícone de São Nicolau
sobressai em cores fortes.
(Ludmila Saharovsky)