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Eu pássaro. Eu peixe. Eu flor e eu, também, às vezes gente.




Procuro, insistente, deixar um marco, o meu registro. Algo como se fosse: “Hei! Também estive aqui! Aqui vivi, compus, sonhei, cantei e vivo ainda.
Eu pássaro. Eu peixe. Eu flor e eu, também, às vezes gente. Eu, gente às vezes…
O resto não importa. Não passa de ilusão.
É noite. No silêncio do quarto ecoa seco, o ruído das teclas no papel, das frases rápidas que nascem e tingem com significados a folha em branco.
A madrugada se aproxima e eu me preparo. De novo sigo em busca do momento que torno a pressentir…e amanhece! E é isto, apenas, o que me vem da vida, do rio e da cidade: (da qual eu sinto, num vislumbre, todo o peso dos 323 anos que também vivi.) A vida que flui de mim a cada aurora.
De mim, Ludmila, nesta Jacareí.
(Ludmila Saharovsky em 1975)

A flor


No cenário da janela
A flor singela
Perfuma a vida.
(Ludmila)

Rugas


Refletido no espelho
As rugas não mudam
Meu sorriso de ontem.
(Ludmila)

Por trás...


Por trás de grossas lentes
Os olhos da casa, impassíveis,
Observam a rua.
(Ludmila)

Pássaros são flores




Pássaros são flores
que se abrem na pauta das manhãs
numa profusão de sons e cores.
São notas musicais, as flores!
E o sol nasce em bemol.
(Ludmila)

Quero

Quero tocar-te com palavras vivas
Quero falar-te com palavras claras
Quero semear-te com palavras raras
Para que o verbo se fecunde em nós
E renomeie a vida.


(Ludmila)



Somente ela



Sorriso amarelo, o daquela mulher estranha. Sorriso de pólen, de girassóis no campo, de crisântemos abertos ao sol das manhãs. Sorriso de laranjas maduras, de ameixas, de mangas suculentas que, sob o céu azul profundo do olhar, espantavam as tristezas do mundo. Somente ela, no entanto, não se apercebia…
(Ludmila Saharovsky)

Lambo meus poemas


A poesia me alcança
Trespassa-me
Impregna-me
com seus diluídos versos…
Cães ferozes, as palavras
me estilhaçam
Aves de rapina ciscam
letras em minha alma.
E eu, vísceras expostas
Lambo meus poemas
Com a mesma emoção
Com que lambi as crias.
                                                                                                             (Ludmila Saharovsky)

Do outro lado do espelho



Do outro lado do espelho, a menina que me olha, imagina que sou o seu reflexo?
Temerosa, a menina de meus olhos não aceitou viajar no imenso mar azul, para o qual a sua a carregava.
Hoje, em vão, vasculha o oceano, mas a latitude perdeu-se para sempre naquele seu olhar!
Com as lágrimas derramadas fez um delicado colar e o levou de presente para a menina que morava em seus olhos, mas ela, escolada, o recusou.
Quando a menina de seus olhos viu-se refletida nos olhos dele, encantou-se de tal maneira, que, para conservá-la, ela precisou mudar-se, com urgência, para a sua casa.
(Ludmila Saharovsky)

Sozinha


Sozinha, nas tardes de melancolia, ela se deixava levar pelas recordações, enredando-se nos longos corredores do passado, onde, inutilmente, buscava seu perdido amor. Resolveu então povoar cada aposento vazio, com as histórias que habitavam suas fantasias. Dia após dia, a casa solitária foi adquirindo vida, cheiros, cores, alegria. As roseiras não tardaram a florir. Os pássaros não demoraram em chegar. Os vizinhos aproximaram-se cheios de expectativas. Afinal, quem fora o autor daquela proeza? Abrindo a porta que dava para o jardim, a mulher libertou a imagem daquele homem aprisionado em suas retinas, e apresentou a todos o autor daquele milagre.
(Ludmila Saharovsky)

Busco o poema


Busco o poema
Lá onde o mar transborda
E o céu assoma
Ostentando já a lua
pressentida.
Na linha do horizonte
O sol se deita
E a palavra nasce
Do silêncio
Assim…

Duas mulheres



Tenho vivido, ultimamente, num vai e vem contínuo pela Via Dutra: Ora estou em Jacareí, ora em Icaraí, e essa nova experiência tem sido muito instigante!
Quando se está num ônibus, com seis horas de viagem pela frente, as opções e escolhas individuais revelam sempre o caráter de seus ocupantes: Há os expansivos, os reservados e os abusados! Alguns passageiros lêem livros, revistas, jornais. Outros fazem palavras cruzadas, corrigem textos, ouvem música. E há os que seguem, ensimesmados, a paisagem tão exata que desfila através da janela, num ritmo minimalista. Existem os que cochilam e os que dormem sem qualquer cerimônia, os que conversam sem tréguas com o companheiro do lado, e os que, insistentemente, comunicam-se pelo celular, colocando sua intimidade no estreito corredor do veículo, transformando-o em palco para informações e confidências que nos impingem.
Enfim, há um lapso de tempo que cada um gerencia de acordo com as suas preferências!

Levou-lhe


Apaixonou-se.
Levou-lhe flores, que ela devorou no primeiro encontro.
Levou-lhe frutas, que ela devorou no segundo encontro.
Levou-lhe um lindo coelho branco, que ela devorou no terceiro encontro.
No quarto, ofereceu a si mesmo à fome insaciável daquela tigresa.
(Ludmila Saharovsky)

tempo submerso


"...Não. Eu não conseguia dormir após ouvir esses relatos dos guias e fazer as anotações em meu diário improvisado. Caminhava, então, lentamente até o cais e olhando para aquele horizonte feito de água que me rodeava enquanto anoitecia, ficava imaginando ossos humanos trazidos até mim pela maré. Longos ossos carcomidos pela areia e água salobra invadiam meus pensamentos e me acompanhavam no caminho de regresso ao quarto que alugara, na Rua Severnaya,16, com vista para o mar. Sentada defronte à escrivaninha uma densa névoa envolvia-me e eu mergulhava num torpor... numa espécie de túnel sem saída. Vagava pelo passado buscando explicações que não havia, que nunca haverá. E escrevia. Plasmava no papel as emoções que me invadiam em ondas inquietantes e me povoavam com espectros!"
ludmila saharovsky

Ela


Ela o criara perfeito. Não esquecera de nenhum detalhe: a armadura reforçada, os peitorais de aço, o elmo luzidio, a lança forjada pelo melhor ferreiro, o escudo onde rebrilhava a insígnia de sua casa. Presenteara-o com o garanhão negro de rara linhagem. Esquecera-se apenas de uma questão que lhe passara, deveras, desapercebida: A de instruí-lo de que seria ela a dama escolhida à qual dedicaria todas as vitórias, e não a pálida donzela pela qual o cavaleiro, perdidamente, se apaixonou.
                                                                                                                         (Ludmila Saharovsky)

Hoje eu quero



...corpo em frangalhos, mente abstraída, alma anelando pela placenta do mar, aquela, onde hibernam todos os navios naufragados, com seus cardumes de estrelas e de medusas.
Hoje eu quero um útero materno onde me alojar e óleos aromáticos para untar-me a pele ressecada. E quero uma veste alvejada e macia, rescendendo a incenso e mirra…eu quero!
E desejo também um anjo que me traga a noite nos braços e uma lua antiquíssima para inspirar meus sonhos e iluminar meu leito com sua aura prateada.
E necessito que tu me encontres logo, dentro do encantamento do sono, quando abro todas as portas para permitir que adentres e te enredes em meu corpo, mais uma vez.
Assim, entre cortinas brancas de nuvens e esse perfume de cedros que emana de tua pele, que pressinto, eu me tranquilizo. E relaxo. E me absolvo de todos os pecados, e dizendo amém, beijo a lembrança de tua boca na minha e, enfim, adormeço.
(Ludmila Saharovsky
do livro Cronistas e contistas contemporâneos, da Editora Scortecci)

Absorta


Parte I
Solovietskie Ostrova
Estou absorta na pequena embarcação balançando sobre as ondas do Mar Branco.
O vento intermitente e úmido me fustiga. É verão, mas a temperatura de oito graus me obriga a enterrar a cabeça no gorro de lã grossa e a proteger o rosto com o capuz do sobretudo enquanto observo o ocaso naquela madrugada clara, sob o Círculo Polar Ártico. Uma luz difusa ilumina a noite e a transforma num cenário raro. Mal o sol se põe e já se levanta. Assim, dia e noite não se delimitam, ao contrário, alternam-se, sem o contraste de luz e trevas a que estou acostumada. Este espetáculo me fascina: Noites Brancas.
Percebo que alguém me observa. Viro e vejo, envolta pela neblina, uma mulher que aparenta ter a minha idade. Ela também está só naquele tombadilho. “Vem com os romeiros?”, pergunta. “Não. Não sou peregrina. Venho à procura de meus mortos”, respondo. Ela balança a cabeça num sinal de que entende a razão de eu estar ali. “Mas você não parece russa!”. Sorrio. “E você, vem a passeio?” “Também não. Trago a minha mãe. Ela busca a sepultura de seu pai. Parece que ele foi executado na ilha.” Fitamo-nos, depois, o mar. Assim ficamos em silêncio por algum tempo até ela apontar para uma luz que lentamente se materializava no horizonte: Solovki.
Meu corpo estremece e a emoção me paralisa em meio à neblina que tão pouco revela. O pequeno espaço é tomado pelos viajantes. Todos querem ter a primeira visão reveladora do arquipélago. Mais um pouco e as cúpulas arredondadas e brancas do Monastério Ortodoxo despontam delineando aquele espaço santo, onde sob o domínio dos Bolcheviques, em 1920, instalou-se o primeiro e o mais temido Gulag soviético. Comoção. Algumas mulheres, com lenços coloridos na cabeça, fazem o sinal da cruz. Outras apertam as mãos sobre o peito. Os homens fumam. Pigarreiam. Tiram fotos. O barco balança muito em meio às ondas vigorosas. Há passageiros que passam mal. O capitão abre caminho e joga as grossas cordas para os marujos que já o aguardam no cais. O alvoroço se instala. Cada um se prepara para deixar a embarcação. Atracamos. Olho o relógio. São três horas da manhã. No mastro, o ícone de São Nicolau sobressai em cores fortes. (Ludmila Saharovsky)

Ali




Movida, então, por essa necessidade interna, eu cravo minhas unhas naquele solo e recolho algumas folhas secas, pequenas pedras, areia fina e as guardo num lenço de papel.
Levanto-me, mas ainda me falta coragem. Começo a caminhar lentamente, tentando aguçar outros sentidos, e, de olhos fechados, revivo momentos de terror.
Momentos em que aquele portão se abria para tantos condenados. Momentos em que, fitando os olhos dos atiradores, sabia-se que a morte era inevitável.
Momentos de agonia, dentro da cova profunda, o ar faltando nos pulmões, o baque da terra sobre os ossos…e depois…Meu Deus! Haveria um depois? Quem sabe o depois seria fazer parte intrínseca dessa floresta, do perfume das sempre vivas, do alarido dos pássaros.
Um toque leve em meus ombros me arranca daquele devaneio. Olhos de um azul límpido me fitam e sorriem.
“Você é a nossa visitante do Brasil?” “Eu a estava observando lá do jardim.”
Vamos entrar. Seja bem vinda a este solo sagrado. Eu sou o padre Kiril.”
(Ludmila Saharovsky)
http://www.ovale.com.br/viver/uma-outra-russia-1.253928

Ele

11
Embarcou na estação para o inadiável compromisso.
Distraiu-a a beleza da paisagem, o sol se pondo no horizonte, o V dos pássaros cruzando o céu em vôo de regresso.
Abstraiu-se tanto que, chegando ao seu destino, esqueceu-se a que veio, assim, nem saiu do trem, iniciando a viagem de retorno. Talvez na estação de embarque, conseguisse relembrar.
Reembarcou no trem para o inadiável compromisso…
(Ludmila)

Respeitarei

Respeitei as doze formigas que, em fila indiana caminhavam perdidas pelas táboas do assoalho de meu quarto.
Respeitei a procisão solene que, dia seguinte, atravessou a cozinha e perdeu-se no túnel escuro escavado sob a rozeira, na grama do jardim. Respeito hoje, o batalhão que me carrega, presa subjugada, e me enfia, sem cerimônias, na boca do formigueiro. Respeitarão as formigas minha condição de refém?
(Ludmila)