Duas mulheres



Tenho vivido, ultimamente, num vai e vem contínuo pela Via Dutra: Ora estou em Jacareí, ora em Icaraí, e essa nova experiência tem sido muito instigante!
Quando se está num ônibus, com seis horas de viagem pela frente, as opções e escolhas individuais revelam sempre o caráter de seus ocupantes: Há os expansivos, os reservados e os abusados! Alguns passageiros lêem livros, revistas, jornais. Outros fazem palavras cruzadas, corrigem textos, ouvem música. E há os que seguem, ensimesmados, a paisagem tão exata que desfila através da janela, num ritmo minimalista. Existem os que cochilam e os que dormem sem qualquer cerimônia, os que conversam sem tréguas com o companheiro do lado, e os que, insistentemente, comunicam-se pelo celular, colocando sua intimidade no estreito corredor do veículo, transformando-o em palco para informações e confidências que nos impingem.
Enfim, há um lapso de tempo que cada um gerencia de acordo com as suas preferências!
O que acontece comigo é muito interessante: Basta eu entrar na estrada e viro outra pessoa!
Junto com o Vale que eu tanto amo, vou deixando para trás, a cada quilometro rodado, filhos, netos, amigos, falta de tempo, correria, o espírito da terra... Vocês já repararam como a nossa região tem uma topografia única, com cenários, cores, cheiros e um sotaque absolutamente peculiar? Pois tudo isso se desprega lentamente de mim, enquanto essa outra mulher que aflora, vai se incorporando. E ela permuta o computador por livros, muitos livros que eu nunca encontro tempo para ler. Troca vestidos por moletons, sapatos sociais por confortáveis rasteirinhas, agenda cheia, por páginas em branco que irá preencher com novas idéias e assuntos! A casa da primeira, tão grande e trabalhosa fica para trás, e surge um apartamento claro e arejado pela brisa marinha, que a segunda adora! O automóvel, imprescindível, para uma, vira objeto absolutamente desnecessário para a outra, pois ela vive num bairro à beira mar onde todos os compromissos se resolvem percorrendo poucos quarteirões a pé. Muda a cabeça e os pensamentos! Mudam os interesses e o astral. Há, para esta segunda mulher, muito mais tempo para dedicar-se a um ócio criativo, preenchido por um tempo não linear: Chronos deixa o caminho livre para Kairós, que possui uma forma diversa de se marcar, maneiras distintas de perceber a vida e o mundo, alem de fomentar nela descobertas e encantamentos insuspeitos. Kairos é um tempo espiritual ...mas este é um assunto para uma outra crônica!
Assim, enquanto a primeira mulher não sabe como desvencilhar-se de compromissos, contas, compras; dos cuidados com a casa, o trabalho, a família...a segunda permite-se ser cuidada, desliga-se de relógios, telefones, calendários; passa a existir livre, leve e solta. Ela consente em tirar férias dessa primeira mulher, reciclando-se, libertando-se do cárcere das rotinas que só gritam ordens e cobram desempenho. Ela se permite experimentar novos caminhos mergulhando de cabeça na experiência de apenas ser. E é muito boa essa metamorfose...não fossem as saudades, tanto de uma quanto da outra! Fazer o quê?

(Ludmila Saharovsky)


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